Ao refletir sobre a frase de William Wordsworth que diz: “a arte tem que ver com emoção, mas não tão profundamente para nos reduzirmos a lágrimas”, lembrei-me de outra frase que dizia que “o artista precisa sofrer para criar”. Uma questão surge: Como avaliar a influência do sofrimento ou da dor na criação artística? Ou, Porque o artista tem que sofrer? A arte pode nos emocionar ao ponto de chorar?
Tentando responder a estas perguntas fui buscar nos estudos que tenho realizado algo que explicasse está relação entre a arte, artista e espectador. Inicialmente buscando na concepção de Marcel Mauss2 que cita que, a regra fundamental de formação e transformação das sociedades não repousa sobre contratos, mas sobre três obrigações complementares: dar, receber e retribuir. Para Mauss, a antítese do dom é a ausência de relação /vínculo. Seguindo esta linha de raciocínio podemos entender que a relação estabelecida entre o artista e o espectador está baseada numa relação de troca e através desta troca podemos criar um vínculo que automaticamente vai servir para realimentar o artista proporcionando uma renovação da sua atividade criadora. Mesmo que não haja necessariamente um espectador no momento da criação ou está criação não esteja vinculada a um espectador, o trabalho criativo não prescinde de troca. Se um artista cria uma pintura e a encerra num castelo e esta obra só é apreciada por alguém séculos depois e passa a ser considerada uma obra-prima, ela passou a ser uma obra-prima no momento em que foi descoberta? Ou se fez obra-prima a partir do momento em que foi criada? Será que seria analisada de forma diferente, um século antes? Creio que não criamos para nós mesmos. O artista tem as suas fontes e utiliza materiais e procedimentos variados para sua criação e a maneira como ele se utiliza destes recursos foi um dos objetivos de pesquisas de Freud3 quando tentou descobrir a intenção do artista no ato de criar.
Questiono em que contexto William Wordsworth produziu esta frase? Este escritor Inglês que viveu no fim do séc. XVIII até meados do séc. XIX, era um escritor romântico e sempre se manifestou contra a poesia artificial do séc XVIII e ao mesmo tempo que afirmava haver uma relação da arte com a emoção não se permitia aprofunda-se nesta emoção, como se permitir-se chorar fosse uma fraqueza. Reservas? Preconceito? Será que achava que emocionar-se mais do que um limite predeterminado poderia faze-lo sucumbir? Será que não estava mostrando-se e ao mesmo tempo tentando se proteger da fragilidade emocional decorrente de um mergulho pleno na emoção que esta mesma arte lhe permitia?
Vários artistas e escritores se permitiram este mergulho, como dizem em relação à Vinícius de Morais que teve várias mulheres a após cada uma destas relações mergulhava na dor para ressurgir depois de alma nova ao encontrar outra mulher que lhe despertava novamente a paixão, não só por uma mulher, mas também pela vida. Seus poemas refletem isto, no texto soneto de separação percebemos a maneira como ele descreve esta dor.
Soneto da separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o
espantoDe repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última
chamaE da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o dramaDe repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contenteFez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente
Encontramos citações variadas sobre o artista e o sofrimento como: “Artista que não quer sofrer, vai ser um artista infértil”4 do Padre Fábio de Melo, e a poesia de Fernando Pessoa, que fala sobre a dor do poeta.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Fernando Pessoa
Em entrevista á Revista Época5, o cineasta americano David Lynch disse que não acredita que artistas transtornados produzam uma arte elevada. De acordo com o diretor, aquele que sofre, é triste, sente ódio ou ocupa sua mente com idéias negativas não cria. “Ele entra em depressão profunda e não consegue nem levantar da cama”, afirma. Para ele, o cineasta não tem que sofrer na vida real para mostrar sofrimento em suas obras. Aquela imagem romântica do artista em depressão provavelmente foi criada na França, por um homem com fome, pobre e cheio de melancolia. “Era o modo como pegava garotas”, ironiza. “A garota o levava para casa, cozinhava um pouco de comida e ele ainda passava a noite lá.” Um artista atormentado, pelo contrário, seria facilmente abandonado pela mocinha, disse, provocando risos na platéia.
A imagem que ficou no imaginário de todos nós relaciona o artista a uma pessoa que vive permanentemente inquieta, angustiada ou em conflito consigo mesmo e muitas vezes excêntrico. Há séculos costumam comparar artistas a seres notívagos, boêmios, doentes da alma e muitas vezes do pulmão. Muitos artistas morriam jovens e criou-se uma espécie de lenda que ligava o sofrimento, as desilusões amorosas á uma vida fértil e curta.
Semana passada li uma reportagem que dizia: “pesquisas recentes alertam – Profissionais das artes são os mais afetados por problemas respiratórios. Se é pintor, fotografo ou ator tenha atenção com a asma. É que, segundo um estudo recente, os artistas, designers, fotógrafos e outros profissionais ligados às artes têm um risco cinco vezes maior de sofrer de asma em comparação do que trabalhadores de outras áreas.
A equipe, liderada por Ahmed Arif, do Centro de Ciências de Saúde da Universidade de Tecnologia do Texas, examinou a prevalência de asma e respiração ofegante relacionadas ao trabalho entre norte-americanos. Para o estudo foram imprescindíveis os dados da pesquisa nacional de análise de saúde e nutrição, de 1988 a 1994.
Em declarações à Reuters, Ahmed Arif referiu que este estudo confirmou as associações entre certos setores de trabalho e a asma, dados que, segundo a opinião do autor, podem ajudar as agências de saúde a decidir onde concentrar as intervenções.”6
Será que o descuido em relação a própria vida não estariam acrescentando à imagem do artista uma aura de sofrimento ampliada, através de seu profundo mergulho na emoção criadora em detrimento do cuidado relativo ao seu corpo físico e a sua saúde de um modo geral?
Pesquisando sobre TDAH no site da ABDA – Associação Brasileira do Déficit de Atenção, encontrei o item:
Exposição a chumbo:
Crianças pequenas que sofreram intoxicação por chumbo podem apresentar sintomas semelhantes aos do TDAH. Entretanto, não há nenhuma necessidade de se realizar qualquer exame de sangue para medir o chumbo numa criança com TDAH, já que isto é raro e pode ser facilmente identificado pela história clínica 7.
A partir da pesquisa sobre a exposição de artistas ao chumbo existente nas tintas e, relembrando que eu também fui criada no meio de tintas, pois minha mãe dava aulas em casa e ensinava pintura com tinta á óleo, comecei a me preocupar em obter mais informações sobre a composição das tintas que ela utilizava e a relação que isto pode ter, com o fato de termos frequentes crises de alergia e dificuldades respiratórias. Está pesquisa chama a atenção para o fato de que muitos outros artistas estavam expostos ao mesmo tipo de produto e encontrei nela novos questionamentos que estão sendo feitos.
No artigo de Alexandre Santos Pimenta, Gilvanda S. Nunes e Benedito Rocha Vital que trata da contaminação de pintores profissionais por metais pesados provenientes de Tintas e Vernizes. Depto de Eng. Florestal – Univ. Federal de Viçosa8, não foi possível fazer uma correlação entre a quantidade de anos de exposição a uma concentração maior de Chumbo, Cádmio e Zinco no organismo. Sabendo-se que “os pigmentos a base de chumbo formam películas pintadas muito duráveis e flexíveis” embora haja um consenso em relação a substituição destes metais por outros menos danosos “caso não sejam observadas as normas de segurança na aplicação destes” a maioria das formulações continuam utilizando estes metais.
Ao mesmo tempo comecei a relacionar a exposição aos materiais artísticos à vida relativamente curta que muitos artistas do século XIX tiveram. Poderemos estender a questão, sofrer para criar, ao fato de sofrer por criar. Mesmo desconhecendo os perigos do material que estava utilizando estes artistas poderiam estar promovendo o próprio sofrimento. Não deixo de pensar no outro sofrimento, provocado pela dor, como uma alavanca que impulsiona o artista para a criatividade, tentando se despir desta dor. Mas não podemos deixar de analisar a vida boêmia de vários artistas como causa de sua fragilização e a consequente proximidade com a morte.
É lógico que apesar destas questões relacionadas à contaminação por produtos que utiliza em seu dia-a-dia, vemos o artista com parte de um universo e não basta só analisamos o seu espaço de trabalho, a sua maneira de viver, a sua exposição a estes produtos necessários a execução de suas obras mas também a análise da emoção e a catarse realizada nos seus momentos do fazer artístico. A associação entre arte e tristeza nos trás uma visão romântica do fazer artístico e num texto de Arnaldo Jabour, ele cita o artigo Elogio da Melancolia, de Eric G. Wilson, da Universidade de Wake Forest. Vemos um comentário importante sobre a tristeza:
”Estamos aniquilando a melancolia. Inventaram a ciência da felicidade. Livros de auto-ajuda, pílulas da alegria, tudo cria um ”admirável mundo novo” sem bodes, felicidade sem penas. Isto é perigoso, pois anula uma parte essencial da vida: a tristeza.”
”Não sou contra a alegria em geral, claro… Nem romantizo a depressão clínica, que exige tratamento. Mas, sinto que somos inebriados pela moda americana de felicidade. Podemos crer que estamos levando ótimas vidas simpáticas e livres, quando nos comportamos artificialmente como robôs, caindo no conto dos desgastados comportamentos ”felizes”, nas convenções do contentamento. Enganados, perdemos o espantoso mistério do cosmo, sua treva luminosa, sua terrível beleza. O sonho americano de felicidade pode ser um pesadelo. O poeta John Keats morreu tuberculoso, em meio a brutais tragédias, mas nunca denunciou a vida. Transformou sua desgraça em uma fonte vital de beleza. As coisas são belas, porque morrem – ele clamava. A rosa de porcelana não é tão bela como aquela que desmaia e fenece.
A melancolia, a consciência do tempo finito é o lugar de onde se contempla a beleza. Há uma conexão entre tristeza, beleza e morte. Só o melancólico cria a arte e pode celebrar a experiência do transitório resplendor da vida. A melancolia, longe de ser uma doença, é quase um convite milagroso para transcender o ”status quo” banal e imaginar inéditas possibilidades de existência. Sem a melancolia, a Terra congelaria num estado fixo, previsível como metal. Deste modo, o mundo se torna desinteressante e morre9.
Ernst Fischer nos diz que “se tirarmos todo o mito e a magia que existe no ato de criar a arte deixará de ser arte”, mas além de observarmos todo o mito e a magia que envolve o ato de criar podemos perceber o artista com uma pessoa que busca desnudar-se para depois se refazer após a troca que faz com a matéria (som ou o objeto trabalhado), com o mundo a sua volta e com um possível espectador de sua obra. E, esta troca e tão mais intensa quanto mais emoção sentimos ou nos permitimos sentir. Conferindo a capacidade de criar como um Dom, ou talvez a possibilidade de dividir com o outro a paixão pela arte, o artista exercita sempre uma relação de troca que vai retroalimentando indefinidamente seu processo criativo. E quanto aos limites? As lágrimas são o início de um processo de limpeza da alma e não algo a ser interrompido. Como dizem que “lavar a alma” é se deixar emocionar até as lágrimas e, lembrando da letra da música de Vinícius que dizia que “a felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor”, podemos comparar a lágrima a uma gota de orvalho que limpa e alimenta nossa alma mas também nos revigora.
Em 2009, recebi um cartaz para divulgação de um evento e na hora de guardar em minha bolsa a Neli Aquino, que é musicista e escritora, me sugeriu dobrar para que não amassasse o cartaz, já que eu não tinha um fita adesiva para prendê-lo. Neste momento fiz uma associação ao ato de dobrar e sofrer e vi que o artista se parece com um cartaz que se for enrolado pode ficar amassado, mas quando dobrado poderá depois exibir suas marcas e não perderá suas características principais, nem se mostrará amassado. Desta forma o fato de sofrer não lhe enfraquece, ao contrário, fortalece sua estrutura. As dobras que o tempo lhe impõe amadurecem suas emoções e mesmo depois de refeito suas marcas não são para serem esquecidas e sim para serem incorporadas a sua história de vida.
Referências Bibliográficas:
1 . MAE, Ana, Arte, Educação e Cultura – citação de wordsworth. Apostila da Disciplina Cultura e Educação, p.38, 2008.
Referências de sites:
- Sabourin, Eric, Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade. Disponível em: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Print ISSN 0102-6909 – http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092008000100008&script=sci_arttext
- SÁ, Olga de, Psicanálise e Literatura: A Interpretação, FACE – 2008 – PUC-SP http://www.pucsp.br/pos/cos/face/psicanal.htm
- Renovação Carismática Católica Brasil – <http://www.rccbrasil.org.br/minist/show_textos.php?aba=minist&nome=txt_000592.php&titulo> Acesso em: 29 out. 2008
- Entrevista à Revista época – David Linch – disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI9931-15225,00.html> Acesso em: 29 out. 2008
- MNI-Médicos na Internet – Paula Pedro Martins, disponível em: <http://www.mni.pt/destaques/?cod=3172> Acesso em: 29 out. 2008
- Associação Brasileira do Déficit de Atenção – ABDA , disponível em: <http://www.tdah.org.br/oque01.php> Acesso em: 29 out. 2008
- Artigo: Contaminação de Pintores Profissionais por Metais Pesados Provenientes de Tintas e Vernizes – Alexandre S. Pimenta, Benedito R. Vidal, Gilvanda S. Nunes e Cláudio P. Jordão – Órgão de divulgação da Sociedade Brasileira de Química, disponível em: <http://quimicanova.sbq.org.br/qn/qnol/1994/vol17n4/index.htm> Acesso em: 29 out. 2008.
- Texto de Arnaldo Jabour – Folha de São Paulo – 22-07-2008, disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080722/not_imp209738,0.php> Acesso em: 29 out. 2008
Imagem em Destaque: Desenho a Lápis de Rose Valverde