Há poucos meses, quando comecei a explicar aos alunos do curso de desenho de Moda sobre as proporções do rosto, disse que teríamos de fazer um retângulo com quatro partes na vertical e três partes na horizontal para traçarmos um rosto masculino. Inicialmente pedi para desenharem duas retas: uma vertical, perpendicular a uma horizontal. E ai? Alguns alunos ficaram perdidos, pois não sabiam o que era vertical e horizontal, muito menos o que era perpendicular. Daí, expliquei o que tinham que fazer e pedi para que riscassem na vertical quatro medidas iguais e três na horizontal. Vejam: eu disse iguais.
Metade da turma foi riscando os pedacinhos cada um de um tamanho. Vi que não sabiam usar a régua para traçar segmentos com a mesma medida. Nem usando um papelão como régua deu certo, pois não sabiam coincidir a ponta do papelão e marcar os pedacinhos iguais. Resultado: cada pedacinho de segmento de reta saiu com medida diferente. Eu fiquei nervosa e falei para a turma: “gente vocês estudaram o quê em artes e matemática? Sabem o que é perpendicular?” Alguns ficaram em dúvida. “O que é vertical e horizontal?” O meu aluno de doze anos, ontem, na aula de desenho artístico soube responder, mas a senhora que estuda desenho de Moda, não soube. Perguntei se ela já tinha usado uma régua ou esquadro para traçar um desenho qualquer, ela disse: – Não, nunca. Compasso? Também não sabe usar.
Falei para os alunos que quando eu dava aula de Educação Artística (década de 80 a 90) ensinávamos a usar a régua e esquadro, assim como noções de formas geométricas e técnicas de desenhos variadas. Na aula de desenho artístico, falei para meus alunos que fazia desenhos usando as formas geométricas (triângulo, quadrado, losango etc.), sendo estas construções básicas uma forma de introdução ao estudo da perspectiva, o desenho de objetos, prédios e formas diversas.
– ??? Ninguém entendeu direito a que eu me referia!
Um aluno de doze anos já havia estudado isso, me disse que ouviu falar. Quando pedi para que me explicasse como era um losango, não soube fazer um. Ah, mas um triângulo, já havia feito. Mas não soube desenhar também.
Confesso que quase chorei de tristeza. Acho até que os alunos mais adultos perceberam minha cara de desolação. Comecei a fazer um discurso sobre a educação de nosso país e o que fizeram com os PCNs. Perguntei, o que os professores estão ensinando nas salas de aula? Uma aluna meio tímida falou que a professora passa umas matérias no quadro e depois dá nota no caderno. E assim mesmo, com estas palavras. Fiquei mais estarrecida ainda.
Meu Deus! Como vou ensinar desenho, dar noções de perspectiva, percepção espacial, trabalhar técnicas artísticas para quem nem sabe o que é uma linha horizontal, vertical, ou um ângulo. Não que eu precise destas definições ou conhecê-las pelo nome, mas se eu não conheço o conceito do que é um ângulo, como eu posso pedir para que façam um telhado por exemplo com um ângulo mais aberto (obtuso) ou fechado (agudo)?. Perguntei a minha aluna o que é um ângulo reto. Ela nunca ouviu falar. Me senti meio perdida, se o básico do básico eles não estão aprendendo, então, estão aprendendo o que?
Cito alguns trechos do PCN de Artes (pág. 23) onde diz que:
O ensino de Arte era voltado essencialmente para o domínio técnico, mais centrado na figura do professor. Competia a ele “transmitir” aos alunos os códigos, conceitos e categorias, ligados a padrões estéticos de ordem imitativa, que variavam de linguagem para linguagem, mas que tinham em comum, sempre, a reprodução de modelos.
A disciplina Desenho, apresentada sob a forma de Desenho Geométrico, Desenho do Natural e Desenho Pedagógico, evidenciava-se pela busca e predominância de reprodução naturalista e figurativa das formas, preocupação com a utilização normativa de instrumentos e a reprodução de clichês; ou seja, era considerada mais por sua função do que uma experiência artística.
… De maneira geral, entre os anos 70 e 80 os antigos professores de Artes Plásticas, Desenho, Música, Artes Industriais, Artes Cênicas e os recém-formados em Educação Artística viram-se responsabilizados por educar os alunos (em escolas de ensino fundamental) em todas as linguagens artísticas, configurando-se a formação do professor polivalente em arte. Com isso, inúmeros professores tentaram assimilar e integrar as várias modalidades artísticas, na ilusão de que as dominariam em seu conjunto. Essa tendência implicou a diminuição qualitativa dos saberes referentes às específicidades de cada uma das formas de arte e, no lugar destas, desenvolveu-se a crença de que o ensino das linguagens artísticas poderia ser reduzido a propostas de atividades variadas que combinassem Artes Plásticas, Música, Teatro e Dança, sem aprofundamento dos saberes referentes a cada uma delas.
… A educação visual deve considerar a complexidade de uma proposta educacional que leve em conta as possibilidades e os modos pelos quais os alunos transformam seus conhecimentos de arte, ou seja, o modo como aprendem, criam, desenvolvem-se e modificam suas concepções de arte.
Ao perceber e criar formas visuais, está-se trabalhando com elementos específicos da linguagem e suas relações no espaço (bidimensional e tridimensional). Elementos como ponto, linha, plano, cor, luz, volume, textura, movimento e ritmo relacionam-se dando origem a códigos, representações e sistemas de significações. Os códigos e as formas se apresentam de maneiras diversas ao longo da história da arte, pois têm correlação com o imaginário do tempo histórico nas diversas culturas. O aluno, quando cria suas poéticas visuais, também gera códigos que estão correlacionados com o seu tempo.
O desenvolvimento do aluno nas linguagens visuais requer, então, aprendizagem de técnicas, procedimentos, informações sobre história da arte, artistas e sobre as relações culturais e sociais envolvidas na experiência de fazer e apreciar arte. Sobre tais aprendizagens o jovem construirá suas próprias representações ou idéias, que transformará ao longo do desenvolvimento, à medida que avança no processo educacional.”
Se formos observar a mudança que houve no ensino, que deixou de ser tecnicista, para procurar proporcionar um ensino mais abrangente que abordasse diversas áreas artísticas – como as artes visuais, a música, artes cênicas e dança -, vamos perceber que ganhamos em expressividade e aprendizagem de novas linguagens artísticas. Mas, se observarmos alguns conteúdos que foram suprimidos do ensino fundamental, percebemos que alguns conceitos básicos sobre a forma e mesmo o simples aprendizado e manuseio de alguns materiais básicos de desenho não estão sendo ensinados. Tudo bem se considerarmos que não podemos obrigar os alunos a desenvolverem habilidades para desenho, mas alguns conhecimentos básicos sobre a forma, volume, dimensão, proporção, incluindo até a correlação com a geometria (que se estuda ??? em matemática) é de fundamental importância para a estruturação do conhecimento na área de artes visuais, assim como na arquitetura, em várias matérias relacionadas a área de Exatas e também na área de informática, associada ao design e web design.
Como entender perspectiva, profundidade, trabalhar com layers e camadas, programas em 3D sem uma base que era alicerçada no ensino fundamental. E ai vai uma pergunta: se não aprendem isto no ensino fundamental e no ensino médio, onde vão aprender? Nas faculdades? Então, porque se exige conhecimentos de formas, luz e sombra, poliedros etc. nas provas específicas de vestibular das áreas de Arquitetura, Artes e Design?
Como exigir conhecimento de quem não os tem? E se não têm, as faculdades estão ensinando esses alunos analfabetos de traçado a fazerem duas retas perpendiculares? Ou a traçarem duas retas paralelas?
Confesso que não consigo entender o que estão querendo fazer com o Ensino Brasileiro. De forma geral percebo que a qualidade do ensino caiu drasticamente nos últimos anos. Mesmo a grade curricular do curso de Desenho e Plástica que fiz na UFJF, que na época parecia-nos deficiente, era melhor que hoje. Tendo em vista as mudanças ocorridas no ensino, não estão preparando suficientemente estes alunos muito menos lhes dando condições de melhorarem, futuramente, a qualidade do ensino fundamental e do ensino médio de nosso país.
O conselho que dou a meus alunos é para que estudem bastante, leiam muito, se informem e não esperem o conhecimento chegar pronto em suas mãos. Mas, mesmo assim, confesso que no meio do caminho parece que algumas partes desta história foi estraçalhada e perdemos muito achando que o moderno é polivalente ou que o professor de arte tem que “assoviar e chupar cana”.
Eu já trabalhei com teatro num projeto que se chamava EmCenaCEM, já fiz capacitação em musicalização através do uso do método Tedem, desenvolvido por Estevão Teixeira (músico de JF). Utilizo a música em minhas aulas, procurando sempre levar discos de artistas e grupos variados brasileiros e internacionais. Procuro sempre que possível despertá-los para a leitura e as artes em geral. Mesmo trabalhando em projetos, faço o possível para que possa realizar um trabalho com mais qualidade e conseguir um maior envolvimento por parte dos alunos. Me sinto muito desanimada quando penso na quantidade de talentos que estamos deixando de desenvolver, porque antes que eles desabrochem estão murchando no meio do caminho, engolidos pela poeira da desinformação e da falta de subsidio para o seu crescimento.
Não sei se há alternativas para reverter estas dificuldades. Gostaria de saber a opinião de outros professores e mesmo de algumas instituições ligadas à arte-educação em relação a esta situação. Acho que falta para nós mais informação sobre o que está acontecendo no ensino fundamental e no ensino médio em relação às atividades, questionamentos e atitudes dos professores de Arte. Aprendi muito nestes quatro anos que participo do grupo de arte-educadores do Yahoo, quando pude conhecer a opinião de vários profissionais em nosso país, mas sinto que podemos aprender mais e crescer juntos, a partir do momento em que trocarmos mais experiências relacionadas ao ensino de Arte.
Sabemos que a arte tem uma grande influência na formação do indivíduo, assim como no desenvolvimento de suas potencialidades, da criatividade e do seu senso crítico, mas não podemos esquecer que o que fundamenta o aprendizado de futuros profissionais na área de Arte-Educação está justamente sendo desvalorizado ou mesmo ignorado no ensino fundamental e no ensino médio. Acho que só mantendo uma rede de informações e maior troca de experiências poderemos tentar modificar um pouco a nossa situação em sala de aula, visando adquirir mais qualidade em nossos projetos. Tenho tentado divulgar ao máximo as realizações de meus alunos e os resultados obtidos nos cursos para que possamos deixar de ser meros professores decoradores de escola ou como arte-terapeuta nas salas de aula, para atuarmos efetivamente como profissionais responsáveis pelo cultivo do conhecimento e pelo desenvolvimento do aluno como um ser integral.
Rose Valverde
Foto no Destaque: Christian Celeste / Tiradentes em Ação